“PRECISAMOS ESQUECER PARA VIVER"
O neurocientista Iván Izquierdo, um dos maiores especialistas em memória do mundo, diz que o esquecimento não só é inevitável, mas também necessário. “A memória perfeita não é possível, nem saudável", afirma
Se você esqueceu onde deixou a chave de casa, não lembra o nome de um antigo colega de universidade, não tem certeza de como acaba aquele filme, relaxe, saia por aí cantarolando aquela letra de Chico Buarque que diz: gravei na memória, mas perdi a senha. "Na nossa mente, há mais esquecimento do que memória", tranquiliza o médico e neurocientista Iván Izquierdo, diretor do Centro de Memória da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e uma das maiores e mais premiadas autoridades mundiais no assunto. Nascido em Buenos Aires, naturalizado brasileiro, ele defende que o esquecimento é inevitável e necessário. "Na maior parte das vezes, esquecemos para poder pensar, e esquecemos para não ficar loucos. Esquecemos para conviver e sobreviver", afirma. O mecanismo é relativamente simples: precisamos abrir espaço no cérebro para novas memórias. Algumas vezes, não lembrar pode ganhar uma função vital, de sobrevivência, como quando o cérebro simplesmente bloqueia um episódio traumático a chamada memória seletiva. Outras vezes, no lusco-fusco em que mergulham nossas experiências de vida, podemos até nos confundir e lembrar de coisas que nunca aconteceram. Está tudo certo, é assim mesmo. Mas, claro, há limites, e os desmemoriados em geral precisam ficar atentos - às vezes, é o caso mesmo de procurar o médico.
Na entrevista que se segue, Izquierdo explica quais os tipos de memórias que existem, como elas funcionam e variam de pessoa para pessoa e o que podemos fazer para não sermos tão esquecidos - ainda que normais.
LOLA: Por que, como você diz, "o aspecto mais notável da memória é o esquecimento"?
- IVÁN IZQUIERDO: Esta é uma frase de um grande neurocientista meu amigo, o americano James McQaugh. Seu exemplo favorito é o de que você, certamente, esqueceu a maior parte da tarde de ontem... Ou de sua infância, apesar de ser esse o período da vida em que mais aprendeu. Provavelmente também já esqueceu a terceira palavra de minha frase anterior.
Seria possível lembrar de tudo? Seria saudável?
É impossível. A demonstração definitiva disso foi dada pelo escritor argentino Jorge Luis Borges. Em um conto, Funes, o Memorioso, de 1944, o personagem central tinha uma memória prodigiosa e podia lembrar um dia inteiro de sua vida. Para evocá-lo, precisava de outro dia inteiro de sua vida, até o último milissegundo. Como isso é logicamente impossível, Borges demonstrou, com esse personagem, e pelo método do absurdo, que a memória perfeita não é possível nem saudável.
Por isso é preciso esquecer?
Sim, é preciso esquecer para abrir espaço para outras lembranças. Temos muitos neurônios que fazem memórias, mas o número deles não é infinito, de modo que sempre precisamos de uma reserva livre. Também precisamos esquecer para poder viver: seria insuportável lembrar de todos os maus momentos da vida. Imagine como seria a memória dos torturados, dos que sofreram queimaduras graves, dos que perderam todos os parentes e amigos queridos em uma guerra ou em um terremoto, se não pudessem esquecer nunca, nada?
É possível alguém que passou por um episódio traumático esquecer completamente o que aconteceu?
Sim, por meio de dois mecanismos: o da extinção e o da repressão. Ambos são processados pelo córtex pré-frontal, pelo hipocampo e pela amígdala. A memória seletiva é um mecanismo de sobrevivência, no qual o cérebro humano é especialista. Mas nem sempre é possível apagar todos os traumas - por isso são chamados de traumas. É comum construir memórias "falsas". enganosas, para dar mais peso a um episódio bom que vivemos?
Quais são os tipos de memória que existem?
Existem vários, e são classificadas pela duração e pelo conteúdo. No primeiro caso, ela pode ser curtíssima ou de trabalho (dura um segundo), curta (de uma a seis horas) e longa (dias ou anos). No conteúdo, elas podem ser divididas em episódica (um filme, um incidente), pela semântica (o inglês, a química, o catolicismo, uma partitura), pelos procedimentos (nadar, andar de bicicleta, tocar teclado, formar frases), pelo sistema sensorial, usado preferencialmente ao adquiri-Ia (olfativa, visual, linguística, auditiva) e pela índole da informação (números, rostos, sentimentos).
Eles variam de pessoa para pessoa?
Sim, há pessoas que parecem nascer com uma memória melhor para sons. Outras para números, outras para ideias abstratas. Porém, o principal fator nesse tipo de divisão é a prática, às vezes inconsciente. Os músicos viram bons para lembrar de melodias ou sons, os bancários são bons para lembrar números, e os médicos para lembrar de nomes de síndromes ou doenças.
Nós lembramos da emoção ou ela serve apenas para "fixar" a memória?
Lembramos da emoção também - felicidade ou dor, por exemplo. Elas estão incorporadas à memória, fazem parte dela.
Por que, em alguns momentos, lembramos do fato e, em outros, somente da sensação?
Lembramos daquilo que nos causou mais impacto emocional no momento em que aconteceu. Preenchemos inúmeros furos com aquilo que nós mesmos dizemos ou que os outros nos dizem. Os seres humanos são muito sugestionáveis. Por isso, somos tão propensos a ser enganados por ideologias - ou pseudoideologias.
Por que, muitas vezes, usamos associações para lembrar de algo?
Absolutamente todas as memórias são associativas.
E qual é a relação entre os sonhos e as memórias?
Os sonhos são memórias em que a informação adquirida se processa utilizando uma lógica diferente da lógica da vigília. Alguns pesquisadores - uma minoria - acham que os sonhos ajudam a fixar as memórias. Mas não há provas confiáveis disso, comprovadas cientificamente. Essa logica explica por que esquecemos os sonhos.
É possível aumentar a capacidade de memorização?
A melhor coisa é praticar a memória, e por meio da leitura. Ler é o melhor exercício. Coloca-se em prática todos os tipos de memória ao mesmo tempo. A leitura envolve um rápido "escaneio" de milhares de letras, palavras e coisas, desencadeando informação a cada letra que se lê, em frações de segundo. É a junção da memória visual e linguística em cada caso, mais a memória daquilo que é lembrado (uma árvore, uma moeda, uma família, um país, uma partitura... )
É possível aumentar a capacidade de memorização?
A melhor coisa é praticar a memória, e por meio da leitura. Ler é o melhor exercício. Coloca-se em prática todos os tipos de memória ao mesmo tempo. A leitura envolve um rápido "escaneio" de milhares de letras, palavras e coisas, desencadeando informação a cada letra que se lê, em frações de segundo. É a junção da memória visual e linguística em cada caso, mais a memória daquilo que é lembrado (uma árvore, uma moeda, uma família, um país, uma partitura ... )
Boa alimentação. atividades físicas e sociais contribuem para quea pessoa tenha
Uma boa memória?
Sim. Além disso, ler muito e evitar substâncias tóxicas é bom. E comer bem, exercitar a cabeça e o corpo é muito importante.
O uso das tecnologias (celulares, e-mails, Google .. ) contribui para um exercício cada vez menor da memória?
Não, isso é um mito brasileiro. Sabendo usá-Ias, as tecnologias favorecem o desenvolvimento de novas memórias. Se não precisamos guardar números de telefone, por exemplo, abrimos espaço para guardar outras coisas.
Por que lembramos muito pouco de nossos primeiros anos de vida?
Porque apreendemos esses anos antes de conhecer a linguagem, então eles são tão inacessíveis para nós quanto a memória dos animais, ou como o idioma chinês. Não há como "traduzir essas memórias" à vida que temos depois dos 2 ou 3 anos, em que tudo o que registramos é expressável por linguagem, ou achamos que é. E isso acontece apesar de a infância ser o período em que aprendemos com mais facilidade, porque nosso cérebro está em formação.
Se somos feitos de nossas memórias, por que lembramos tão pouco?
É que somos menos do que pensamos ser...
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